Como é a vida na Espanha?
- Tai Cruz
- 11 de set. de 2020
- 10 min de leitura
Atualizado: 24 de out. de 2020

Veja bem, meu bem, essa história de cultura e costume é um negócio particularmente rico demais. São tantas coisas, que dariam um livro. Tenho quase um ano no velho mundo (porque nos mudamos? contei aqui), e grande parte dele foi dentro de casa, em plena pandemia. Apesar disso, separei alguns aspectos estruturais, culturais e comportamentais que vivo observando por aqui para alimentar a curiosidade genuinamente brasileira de vocês. Isto posto, bienvenidos al sur de España.
Começo com a diferença que mais bagunçou a minha vida: o fuso horário. São 4 horas de diferença entre Espanha e Brasil. Enquanto você almoça, eu já tô no fim da tarde. E por falar em tarde, aqui ela dura até as 19, 20 ou até mesmo 22:30 (no verão). Então não se assuste se você ouvir alguém dizendo que são 8 da tarde. Nós chegamos no outono e demorou um tempo pra nos acostumarmos com o dia amanhecendo 8:30 da manhã. Quando meu relógio biológico estava praticamente recuperado, começou o horário de verão (e eu achando que tinha me livrado). Atualmente estamos 5 horas na frente do horário do BR. Dá pra aproveitar bem a luz solar, mas eu ainda não me acostumei a jantar de dia (risos).

Por falar em horas, outra coisa bem diferente é o horário comercial. Isso porque além do fuso, os espanhóis são adeptos da Siesta (antigo costume romano de descansar na sexta hora do dia). O costume não é rígido e varia conforme a localidade, o estabelecimento e o sono do proprietário (risos). Torremolinos é uma cidade pequena no sul da Espanha, então o costume ainda funciona. Os comércios geralmente abrem das 9:00 as 14:00 - fecham para siesta - e voltam entre 16:00 e 18:00 até as 20:00 ou 22:00. Mas isso não significa que eles trabalhem menos que no Brasil. Trabalham as 8 horas diárias. Todo esse costume é regido pelas variações das estações bem definidas (é interessante poder diferenciar primavera e outono), e principalmente pelo calor intenso do verão. Calor esse que, no caso da Andaluzia, é influenciado diretamente pela África.
Locais mais turísticos costumam ficar abertos na siesta, mas é sempre bom ficar de olho no horário pra não dar de cara com a porta. Essa tradição acaba interferindo, consequentemente, nos horários das refeições. Isso é divertido e fácil de observar, já que os espanhóis têm verdadeira adoração pelo “bar” e fazem as refeições nas terrazas dos restaurantes. O café da manhã, ou desayuno, é entre 10 e 11. Já o almuerzo fica lá pelas 14. Depois da siesta ainda tem trabalho né? Então a cena (jantar) é bem mais tarde, entre 21 e 22. Se você é apegado com carne bovina, fica sabendo que aqui ela é bem cara e com menos diversidade que as outras (porcos, aves e frutos do mar). A Espanha é mundialmente conhecida pelos seus embutidos de cerdo (porco). Tem tudo que você pensarem de porco aqui, mas não tem a calabresa da feijoada, acreditam? Compramos em lojas brasileiras.
Sabe o que também é caro aqui? Fruta. Tem poucas frutas nativas e, portanto, a maioria é importada (as vezes sem graça e cara). Inúmeras vezes ao avaliar a nota fiscal, a gente se deu conta de que o item mais caro da feira era uma fruta (geralmente mamão, risos). As ofertas dependem muito da região e da estação. Pra gente que tá acostumado a só tomar suco, exige malabarismo. As frutas baratas e produzidas aqui são laranja, limão, banana, pêssego e em determinada época do ano, as frutas vermelhas (morango, mirtilo, framboesa, cereja e até melancia). As frutas amarelas (como manga, abacaxi, maracujá) são mais caras e difíceis de encontrar. Também não encontramos quiabo, chuchu, nem couve (a lista é longa).

Já que o assunto é comida, pasmem: não tem restaurante a kg. É de longe o que mais a gente sente falta. O único lugar de buffet livre que encontramos até hoje foi a churrascaria brasileira. Eu diria que o estilo dos espanhóis é a la carte. Raramente você verá um prato com várias elementos dentro (como feijão, arroz, salada, carne). São pratos individualizados. Geralmente os restaurantes têm menu do dia, onde você pode escolher dois pratos e uma sobremesa. Eles também frequentam os bares para beliscar tapas e tomar umas cañas. No bom português, eles levam a sério a tradição de dividir uns petiscos (variam com a região, podem ser aceitunas, patatas, gambas al ajillo, jamón...) e tomar “uma” (cerveja). À noite, acho que eles curtem mais destilados e fermentados do que uma cervejinha. Não esquecendo do chupito (shot) para abrir o apetite ou digerir melhor a comida. Pra mim, sentar no bar ou na praia pra tomar algo (até de manhã!) é o costume mais espanhol que existe.
Minha bebida preferida é um clássico espanhol, el tinto de verano.
Apesar de morar no litoral, as praias são bem diferentes do Brasil. A água é estupidamente gelada, mas como onde eu moro faz sol 300 dias por ano, tá valendo. As praias não têm areia fininha como as do nordeste. É uma areia grossa (por vezes colocada). Existem também praias de pedra, e as chamadas calas (recantos menores, mais tranquilos e afastados). Top less é liberado, praticado em todas as idades e é algo natural (falei mais sobre isso aqui). Também tem muitas praias de nudismo. Chuva de verão? Nunca nem vi. Coco verde também não. Tem poucos vendedores ambulantes, até agora nenhum de comida. As barracas de praia ou chiringuitos, são restaurantes mais estruturados na orla. Ficam mais distantes da areia e por isso, as praias não tem muito som. Tem várias praias legais aqui perto de casa, dá pra chegar de metrô, de ônibus ou a pé mesmo.

Os aviões que me desculpem, mas agora eu amo trens. O país é cortado pelas linhas de trem, o que garante um transporte terrestre mais rápido e ecológico. Existem linhas tanto entre províncias (que são como os estados no BR) como entre cercanias (cidades vizinhas). Acabei de conhecer brasileiras que moram aqui a mais tempo e elas me disseram que o transporte ainda tem muito que avançar por aqui. Alguns trajetos são inviáveis de transporte público. Pra mim, que sempre morei no interior, é tudo moderno e novo. Além disso, tem um aeroporto internacional a 15 minutos de trem da minha casa. Voar nunca foi tão fácil (inclusive com passagens bem baratas). Outra facilidade são as ciclovias para bikes e patinetes elétricos (uma febre).
Acho que transporte fechado é um dos únicos lugares onde os espanhóis não fumam (brincadeirinha, risos). Eu já tinha ouvido falar, mas vendo ao vivo é mais impactante. Eles fumam muito, em todos os lugares. Raramente você verá uma placa de que não é permitido fumar. Fumam nas ruas, nos bares, nas praças, dirigindo. Os adolescentes fumam (ok, isso foi um pouco chocante). No começo eu me sentia num filme de 1930, mas a verdade é que você se acostuma. Só acho feio quando jogam a bituca no chão, tem muito. Com tanto vaso de lixo espalhado, porque no chão? Talvez essa porcentagem maior de população fumante tenha contribuído para uma relação com a Cannabis "mais liberal" que no Brasil. Na Espanha, uma brecha na lei permite que existam clubes (apenas residentes podem se associar) para o consumo “legalizado” da planta.

Falando em lixo, aquela velha história de pessoas “jogando” coisas boas fora, não é coisa de filme, é real. A coleta é eficiente (pelo menos aqui na rua), com coletores subterrâneos para vidro, orgânico, envases e até roupas e sapatos (para doação). Na capital da província que moro, tem coletores para pilhas e óleo usado. Existem dias específicos para a prefeitura recolher outros materiais (colchões, móveis, livros, roupas, tudo), apesar dos moradores quase nunca respeitarem isso. Daí o costume de colocar coisas boas no lixo, que podem ser reaproveitadas pelos vizinhos antes do recolhimento. Acreditamos que muitas dessas coisas vão parar no mercadinho de rua, que vende de tudo. De azeitona a fósseis e antiguidades. Soube que a destinação do lixo não é tão moderna e eficiente. Vou pesquisar mais.
A Espanha cabe dentro da Bahia né? Muito provavelmente por isso, a vida se desenvolva no alto por aqui. São raras as casas que você encontra. Praticamente todo mundo mora em prédio. E foi uma novela alugar um lugar sem contrato de trabalho, mas isso fica pra outro dia. De tempos em tempos eles lavam as ruas com água não potável. Algo necessário, já que todo mundo aqui mora em apartamento e tem cachorro (se é que vocês me entendem). Não catar a caca do seu cachorro nas praças tem multa de 500 euros. Mas nunca vi ninguém fiscalizando. Não tem cachorros de rua, mas em contrapartida, tem muitos gatos callejeros (inclusive em muitos municípios é proibido alimentá-los).
Os pisos não tem lavanderia (o que é péssimo) e a máquina de lavar fica no banheiro ou na cozinha. Falando em banheiro, não tem ralo. Descobri isso depois que já tinha alagado o apartamento (risos). Daí você me pergunta: e o como lava o banheiro? Não se lava, se limpa (com pano e produtos específicos). Parece que esse costume de tomar muitos banhos e lavar banheiro é mesmo brasileiro. Em contrapartida, a coisa mais comum é ter uma banheira em casa. Faz sentido pra você? Pra mim não faz (risos). Costume é costume né? Inclusive, tenho que dizer que ter banheira é algo super estimado. É estranho tomar banho nela em pé (que é o que todo mundo faz todo dia) e raramente enchemos. A água é um recurso mais escasso, e é bem ruinzinha. É uma água dura (muito calcário) que deixa a pele ressecada, esbranquiçada após o banho e o cabelo grita.
Apesar de ser um país católico, muitos costumes aqui são bem pagãos. Eles também comemoram Carnaval (com blocos e desfiles de rua) e São João (com fogos, fogueira e um tipo de lual pra virar a noite na praia). O Natal começa com a tradição de acender a árvore e toda a decoração da cidade. Todo mundo vai pra praça acompanhar a contagem, tem música, apresentação de patinação, balões... Eles levam as tradições a sério. Onde eu moro, o presépio é montado no andar de baixo da prefeitura e é a coisa mais linda. Cheio de detalhes e movimentos.

Eles chamam dia 24 de dezembro de noche buena e 31 de noche vieja. E não acaba por aí, os festejos de navidad só se encerram no dia 6 de janeiro, dia de Reyes (que trazem os melhores presentes para as crianças). Melchor, Gaspar y Baltasar são mais importantes que o papai noel. Tem desfile tradicional com trios pela rua e os reis com seus ajudantes jogam chuches (doces) e peluches (pelúcias) enquanto as crianças (e adultos) esperam com suas sacolas. A balada na testa é certa (risos). Esse é só um dos exemplos de como as crianças estão inseridas na cultura e nos festejos. Percebo que aqui, as crianças são bem vindas. E existe uma estrutura toda pensada para atender as necessidades delas. Seja nos parques, nas festas, no sistema de saúde ou nas escolas.
Existe um sistema de saúde “similar” ao SUS. Ao entrar no sistema, nós temos um centro de saúde (um tipo de posto bem estruturado) e médico de cabeceira (um médico de família). Sempre temos que marcar consulta com ele antes de ser encaminhados para outra especialidade. Uma vantagem: o encaminhamento geralmente é automático. Eles marcam e te ligam pra avisar. No centro de saúde fazem exames laboratoriais, aplicam vacinas e tem emergência também. Agora com a pandemia, praticamente tudo está acontecendo por teleconsulta. E se precisar de receita, eles liberam no seu cartão (com chip) e você pode comprar em qualquer farmácia.
Eles são bem "práticos e objetivos" no atendimento ao público. Não tem enrolação. E sim, as vezes são grosseiros (e vivem bufando, sem paciência). Dizem que em outras regiões se sente mais isso. Aqui no sul, as pessoas até que são receptivas. Inclusive, encontrei pessoas que me cumprimentaram com dois beijinhos (pré-pandemia, claro). Outra coisa interessante, é que é difícil encontrar atendimento preferencial em supermercados e repartições públicas. Mudar pra cá aumentou muito a nossa qualidade de vida, e é realmente um privilégio. Moramos em uma cidade pequena com facilidades de uma capital e um bom acesso a cultura. Teatros, cinemas, jardins botânicos, museus, centros históricos... Um mundo novo cheio de cores e prazeres por descobrir. Tenho muitas metas pra essa temporada espanhola, como por exemplo aprender flamenco (risos). Sinto mesmo que deveria estar aqui, agora.

Mas a vida imigrante também tem muito perrengue, burocracia e incertezas. As vezes você dá um passo almejando um objetivo e depois descobre que ainda faltam mais 30 passos. E não, não é porque é Europa que passar perrengue é legal. Perrengue é perrengue em qualquer lugar do mundo. Em outra língua então, pior ainda. Você se sente ansiosa, preocupada e sozinha. Por vezes falta pertencimento, sabe? Mudar de país é sinônimo de deixar muitas coisas pra trás. Você está disposto a abrir mão? Não é fácil, mas vale muito a experiência. Findo com trechos de um poema que descreve muito o sentimento de morar fora:
- A viajante -
"...A gente sente que não está deixando apenas uma cidade, mas uma parte da vida, uma pequena multidão de caras e problemas e inquietações que pareciam eternos e fatais e, de repente, somem como a nuvem que fica para trás. Esse instante de libertação é a grande recompensa do vagabundo; só mais tarde ele sente que uma pessoa é feita de muitas almas, e que várias, dele, ficaram penando na cidade abandonada.
...E há também instantes bons, em terra estrangeira, melhores que o das excitações e descobertas, e as súbitas visões de belezas sonhadas. São aqueles momentos mansos em que, de uma janela ou da mesa de um bar, ele vê, de repente, a cidade estranha, no palor do crepúsculo, respirar suavemente como velha amiga, e reconhece que aquele perfil de casas e chaminés já é um pouco, e docemente, coisa sua.
...Mas há também, e não vale a pena esconder nem esquecer isso, aqueles momentos de solidão e de morno desespero; aquela surda saudade que não é de terra nem de gente, e é de tudo, é de um ar em que se fica mais distraído, é de um cheiro antigo de chuva na terra da infância, é de qualquer coisa esquecida e humilde – torresmo, moleque passando na bicicleta assobiando samba, goiabeira, conversa mole, peteca, qualquer bobagem."
Rio, abril de 1952. Rubem Braga
Isso é tudo que eu conseguir reunir mentalmente até agora. Sigo explorando e quando eu descobrir mais coisas, eu corro aqui pra contar. Com ♥, Tai
Nota mental: A coisa mais aleatória que eu queria contar mas que não se encaixava em nenhum lugar desse texto: os caixas eletrônicos possuem troco em moedas. E apesar de ser um país "pequeno" a Espanha tem cultura muito rica e diversa. Várias coisinhas mudam de uma região pra outra. Era só isso. Beijos
Fonte imagem 2: https://blogueirosmadrid.com/2015/04/30/horarios-na-espanha/
Já já tem novas aventuras Thai kkkk <3
Em breve você vai conferir tudo pessoalmente, mom <3
A leitura me transportou para a Andaluzia.
Eu ameiii! Esse tipo de texto com detalhes e curiosidades me deixa grudadinha kkkk aguardando os próximos💕