Peitos para quem?
- Tai Cruz
- 24 de jun. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 23 de out. de 2020

Espanha, primavera de 1930. Elena Diakonova, mais conhecida como Gala Eluard Dalí estava adoentada e recebeu recomendações médicas para um retiro na praia. O destino escolhido: povoado de Torremolinos na Costa do Sol, sul do país. Faz muito calor, então Gala e seu marido, Salvador Dalí (sim, o pintor e rosto icônico de la casa de papel) decidem se refrescar na praia La Carihuela. Na areia, ela se despe das vestes superiores enquanto seu marido a olha de um jeito divertido.
Gala, inocentemente estava fazendo o primeiro top less documentado da história da Espanha. Imaginem vocês, a surpresa dos pescadores ao ver a seguinte cena: Gala banhando-se com os peitos livres, fumando um cigarro e posando para Dalí. Um deleite incomum para a época. Além do que, Dalí estava terminando de pintar seu quadro “el hombre invisible” e as testemunhas contam que sua musa se depilava e tingia as axilas de azul, era untada com excrementos de cabra e levava um gerânio vermelho na cabeça enquanto posava para ele.

Outras mulheres ilustres também colocaram seus peitinhos al aire em Torremolinos e arredores malagueños (Marbella e Mijas), dentre elas Brigitte Bardot em 1957 (eternizada no mural ao lado), Elizabeth Taylor em 1986 e a princesa de Gales, Lady Di, em 1994. A verdade é que por receber muitas rodagens de filmes, a Costa do Sol foi cenário do cinema destapado dos anos 70. O top less ou "tomar el sol a cuerpo de reina" era instaurado com esplendor e naturalidade na Espanha. Torremolinos é cheia dessas histórias idílicas, hedonistas e libertinas. Todo dia descubro uma nova. Aos poucos compartilharei algumas com vocês.
Amparada pela história dessas mulheres, deixo o relato do meu momento (compartilhei no insta também), diga-se de passagem, inesquecível.

“Eu tirei sorrateiramente a parte de cima, deitei de barriga pra baixo e esperei ele perceber. Sim, é a coisa mais normal do mundo aqui. La Carihuela tem história e achei que não teria melhor lugar para perder a virgindade. Ele percebeu e me olhou incrédulo: - você tirou? Dei uma risadinha marota. Ele me disse a frase clássica dele quando me acha insurgente: - você tá demais! Fiquei um tempo de bruços me preparando psicologicamente pro momento. Ele foi pra água e disse: - se comporta. Me deu a deixa. Virei de barriga pra cima e comecei a rir: - assim? Ele balançou a cabeça. Minutos depois que ele voltou, chamei pra dar outro mergulho, dessa vez comigo. Comecei a levantar e ele perguntou: você não vai vestir o biquíni? Respondi prontamente: faz diferença? Nem precisava responder. Sai saltitante pra água. No começo do dia eu estava tímida e ele olhando sem acreditar. No fim, eu estava me sentindo a europeia acostumada e ele dirigindo essa foto que me deixou apaixonada.”

Ao longo do domingo, várias coisas passaram como um filme pela minha cabeça. Revivi cada ponto da minha conturbada relação com meus "pêsseguinhos". Lembrei do quanto eles me incomodaram, e de como eu queria que eles fossem maiores, atraentes. Ser adolescente "sem peito" também é cruel. Eu tinha certeza que homem nenhum se interessaria por eles. Se eu não achava eles dignos de interesse, quem mais acharia? E por conta disso atribui aos meus seios um status de "sensível e intocável" juntamente com a concepção de que no sexo, eu teria menos vergonha de tirar a calcinha do que o sutiã.

Na real, peito sempre foi um tabu pra mim. Me sentia atrasada na puberdade e morria de vergonha deles. Arrisco dizer que é minha parte favorito do corpo feminino. Todos os seios podiam ser considerados lindos, menos os meus. Surpreendentemente, nunca pensei em silicone, acho que só por evitar intervenções cirúrgicas mesmo. No fim, eu tava imersa no meio. Preocupada demais com a opinião alheia. E o padrão exaltava (exalta) seios avantajados, redondos, firmes e empinados. Completamente diferentes da esmagadora realidade.

E o mercado se aproveita né? Te entrega a salvação em forma de cirurgias estéticas e bojo. Bendito seja o bojo entre as mulheres! Em todos os sutiãs, em todas as roupas, as vezes nos formatos mais distorcidos possíveis. A Tai de 18 anos jamais imaginou fazer as pazes com os próprios peitos. Achávamos que a rusga seria eterna. Mas se tem um coisa que é certa na vida, é o cuspe caindo na cara (risos). Não reconheço mais quem eu fui. Mudo a todo instante. Mulher. Mutável. Mutante. Sei que não posso comparar minha trajetória com outras, eu ainda estou mais próxima do padrão que a maioria das mulheres. Mas com o tempo e o autoconhecimento, foi ficando mais fácil acolher meus peitos.

A convivência se tornou mais leve. Um dia eu pensei: se eu já aceitei eles como são, por que ainda escondo? Daí resolvi queimar todos os meus sutiãs! To zoando :) . Na verdade eu só arranquei o bojo deles (salvo um ou outro que estragaria a peça). E comecei a exercitar usar sutiãs sem bojos em todos os espaços (inclusive no trabalho). O próximo passo foi sair sem sutiã com roupas folgadas, que não marcassem. Fui testando o meu conforto dentro de cada situação e as reações ao redor. Nem toda mulher pode se dar ao luxo (caso queira) de não usar bojo (serve de sustentação né?) ou ficar sem sutiã. E tá tudo bem também. To te contando a minha trajetória e muito provavelmente não será como a sua. Cada uma tem suas preferências e necessidades. Eu resolvi mudar meu olhar e naturalizar os meus seios. E o único lugar possível para começar, era por mim mesma.

Hoje opto por modelos confortáveis (existem sim) que valorizem meus pêsseguinhos como eles são. Quanto as reações? Não tem do que se envergonhar, são só peitos sendo o que eles são: peitos. A quarentena fez muitas mulheres esquecerem que o sutiã existe. Coisa boa é usar algo a nosso favor e não como obrigação. Aqui (na Espanha), vi mulheres de todas as idades despidas desse pudor cultural em torno dos seios. E foi aí que percebi o quanto eu ainda precisava naturalizar os seios. Me inspirei nas velhinhas plenas e libertas lendo na praia, e me desfiz do restinho de conservadorismo e pudor que resistia em mim.
Colocar os peitos al aire era algo que eu não sabia o quanto eu desejava, até provar. Percebi, já sem o biquíni, que entrar na água era o que eu mais queria fazer. Fechei os olhos por diversas vezes pra sentir mais forte o movimento da água fazendo carinho neles. Olhei ao redor e ninguém (além de Silas, claro) prestava atenção na meu êxtase recém descoberto. Acrescentei um Item novo na minha lista de coisas mais prazerosas da vida.

Quando eu me mudei pra cá, uma amiga me disse que eu encontraria muitas curas pessoais. Naquele domingo eu me dei conta de que encontrei a primeira: um banho de mar livre, foi o ápice de cura da minha relação com meus seios. Estamos finalmente na mesma sintonia (poderiam ser maiores? poderiam, só não os detesto mais). Enquanto eu olhava as ondas baterem no meu peito livre, refleti sobre quem nos tirou esse direito. Já parou pra pensar por que somente peitos femininos ofendem?

É um grandiosíssimo pé no saco essa erotização dos seios femininos. A política do instagram não proíbe mamilos, proíbe mamilos femininos. A objetificação dos seios está enraizada na nossa cultura a tal ponto, que amamentar em público se tornou algo polêmico e sexualizado. Segundo Maria Lucia Homem, psicanalista e professora do núcleo Diversitas da USP: O peito é o primeiro objeto da relação humana com o outro (entre o bebê e a mãe). Após a amamentação, o seio sobe a um patamar assexuado de "seio de mãe" e não mais de mulher. Isso reforça o estereótipo de seio de mulher erotizado (duro e firme) dissociado do seio de mãe (mole e caído).
A ideia do patriarcado é a seguinte: o corpo feminino é sexual e tem função de agradar ao homem. Portanto é seu patrimônio, propriedade. Nas culturas que o corpo feminino é retratado de forma mais natural, ligada a natureza (indígenas e africanas por ex.) o seio também é visto de forma natural. Entretanto, "quando os corpos (e os seios) femininos são considerados propriedades públicas, a legislação se sente no direito de censurá-los" (Thaís Matos Pinheiro).

Além disso, existe a associação religiosa à imoralidade. A história das civilizações (principalmente europeias) perpassam por uma demonização do prazer feminino, onde ele é associado ao pecado, portanto é condenado e deve ser mantido longe dos olhos alheios. No Brasil, trocamos a naturalidade dos nossos corpos, memória dos ancestrais indígenas pelo pecado carnal português. E fica cada vez pior. Exceto no carnaval. Sexualizar e comercializar o corpo feminino no carnaval pode. Alimenta a fantasia sexual masculina. O que não pode são mulheres tomando sol com esses mesmos corpos livres na praia. Gozado né?
Aqui as mulheres geralmente exibem biquínis enormes mas em compensação são adeptas de peitinhos al aire. O tipo de educação que a gente recebe faz a gente ver isso com normalidade ou não (inclusive as crianças). Ninguém ficando "secando" o peito de ninguém, nem rindo, nem fazendo foto, muito menos se comparando. São só corpos naturais curtindo um dia de praia. Esse não é um diálogo sobre feminismo (equidade de direitos sociais e políticos) ou sobre empoderamento (consciência coletiva em forma de ações contra o machismo). Faço minhas as palavras de Joice Berth para explicar:

"Feminismo é uma luta por emancipação de um sistema que oprime até a morte. Exige muito de quem se coloca nessa posição. Exige muito mais do que proclamar que uma nudez é sinônimo de liberdade, inclusive é bom questionar também o que significa liberdade do corpo. Quando falamos de opressões como o machismo e o racismo, falamos de relações de poder hierárquicas, pautadas em uma pirâmide social. Homens, brancos, héteros e cisnormativos ficam no topo dessa pirâmide. Abaixo estão as outras categorias, como mulheres, pessoas negras, etc. Empoderamento é sobre subverter estruturas de poder. A nudez não subverte essas estruturas– e, por isso, não empodera."
Por mais que seja comum associar os termos, são coisas diferentes. E reafirmo mais uma vez, que isso pode confundir meninas em formação. Se elas acreditarem que a nudez é empoderamento, podem ficar expostas a situações que não estão preparadas para lidar (como assédio e abuso). Esse texto é sobre autoconhecimento, aceitação, cultura e naturalização dos corpos femininos. A nudez pode ser uma construção dentro da sua relação com seu corpo. E falar disso sem levar em consideração a existência de privilégios e desigualdades seria irresponsável da minha parte. Quando usamos a nudez sob uma perspectiva errada, nós fortalecemos o sistema opressor.

O desafio do dia-dia é naturalizar novamente os corpos (e seios) femininos e dissociar eles do pecado moral. Entender que o prazer também é nosso e não uma ferramenta exclusiva de satisfação masculina. E por fim, sem sombra de dúvidas, devolver o poder sobre esses corpos para suas verdadeiras donas, as mulheres.
Nota mental: Quer ler mais sobre o assunto? Navega nos links abaixo. Com amor, Tai ♥
Fontes:
https://medium.com/lado-m/a-erotiza%C3%A7%C3%A3o-dos-seios-femininos-5d29bda2fc67 Foto 1 (capa): https://www.elespanol.com/reportajes/grandes-historias/20170805/236726723_0.html Foto 2 (Brigitte): https://fi.pinterest.com/pin/559079741243036752/ Foto 3 (Blusa): tatooine girl Foto 4 (Gif peitos): Lauren Smyth Foto 5 (Sutiã): Vanessa Farano
Foto 6 (água): Mick Champayne
Foto 7 (peitos de homens): Daniela de sainz
Foto 8 (balança): Radek Baczkowski
Foto 9 (Joice Berth): https://www.amazon.es/Empoderamento-Feminismos-Plurais-Portuguese-Joice-ebook/dp/B07TWN7461
Que texto Tai!!!! Que sonho tomar banho de mar com os peitinhos livres, rai aiii, quem sabe um dia! <3 Bjkas
Um passinho por vez, amiguinha. Te amo <3
Eles chegam na hora deles, pavoinhaaa <3
É um exercício diário, ainda temos muito a nos libertar!
Obrigada pelo texto, e por ser inspiração! Amiguinha ❤️
E como exige! Mais as SICRONIDADES da vida encaminha os aprendizado no momento certo, uma pavoasinha disse. Rs